quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Notícia da semana: Um passado bem presente


Acessíveis e envolventes, os best-sellers de histórias sanam deficiências escolares e conferem ao leitor um senso de continuidade que se contrapõe à retórica do "nunca antes neste país"

No mercado brasileiro, um livro de não-ficção que chegue a 15 mil exemplares já pode ser considerado um best-seller. Em geral, é o que basta para garantir que o título figure pelo menos algumas semanas na lista dos mais vendidos de VEJA. Esse dado torna os 600.000 exemplares vendidos por "1808" uma marca tanto mais impressionante. O livro lançado em 2007 por Laurentino Gomes, no entanto, não é um sucesso isolado. O interesse do leitor por história - e, particularmente, pela história do Brasil - tem sustentado um rico filão. O fato pode ser atestado na lista de mais vendidos desta semana. Lá estão três bons representantes da divulgação histórica. Os recém-publicados "Uma Breve História do Brasil", de Mary Del Priore e Renato Venancio (os únicos da lista que são historiadores por formação), e "Brasil: uma História", de Eduardo Bueno, propõem uma visão panorâmica da gênese nacional. "Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil", de Leandro Narloch, dedica-se a desmontar alguns consagrados lugares-comuns, como a romântica noção de que os índios viviam em um Éden pacifista antes da chegada do colonizador português. Bem pesquisados, amparados na melhor bibliografia especializada, esses são livros que buscam se afastar do ranço acadêmico. São concebidos para o público amplo, o brasileiro médio que a escola tantas vezes deixou órfão de boa informação sobre o passado do país - e, assim, privado de ferramentas para entender completamente as peculiaridades de seu presente.
Jornalista, Bueno é um dos pioneiros dessa literatura de divulgação histórica, com a série "Terra Brasilis", revisão dos primórdios da colonização portuguesa do Brasil. Iniciada em 1998 com "A Viagem do Descobrimento", a série já vendeu mais de meio milhão de exemplares. "Sempre fui apaixonado por esse período, do qual tenho uma visão conscientemente romântica. E achava que essa história não poderia ficar aprisionada dentro da sala de aula", diz. O autor não tem uma lembrança agradável do que ouvia nos bancos escolares: não se viam, diz Bueno, pessoas "de carne e osso" nos livros didáticos. Um esforço comum das obras de divulgação histórica é dar contornos palpáveis à vida do passado - no que se beneficiam das pesquisas acadêmicas da vida privada e da chamada "micro-história". No capítulo sobre a descoberta do Brasil de sua "Breve História". Mary Del Priore e Renato Venancio descrevem as presumíveis agruras dos marujos que viajavam nas caravelas com que Pedro Álvares Cabral aportou na Bahia em 1500 - condições precárias de higiene, espaço apertado, alimentos deteriorados. Ao lado dessa atenção para com o homem comum, há também uma nova consideração pelos figurões. Daí a biografia ser um gênero forte: lançada há quatro anos e hoje com nove títulos, a coleção "Perfis Brasileiros", da Companhia das Letras, já chegou à soma de 115.000 exemplares. O carro-chefe é "D. Pedro II", do historiador José Murilo de Carvalho, com 40.000 livros vendidos. Esse interesse pelo grande personagem, é claro, não se limita a história do Brasil - "Hitler", de Joachim Fest, lançada no Brasil pela Nova Fronteira, já vendeu 75.000 cópias. Regenerado pelo interesse do grande público, o papel do indivíduo vinha sendo menosprezado pela historiografia mais à esquerda. "O engessamento provocado pelo marxismo dentro da universidade ocultou um dos gêneros mais apaixonantes da história, que é a biografia", diz Mary, ela mesma autora de biografias como "O Príncipe Maldito", sobre Pedro Augusto, neto do imperadordom Pedro II  que deveria ter herdado a coroa.
O êxito dessas obras nas livarias também tem permitido que os autores ingressem no lucrativo circuito de conferências em escolas e empresas. Mary diz que a instigação para a "Breve História" surgiu da ansiedade que os ouvintes de suas palestras corporativas demonstravam por obter mais "conteúdo" em história. "Acredito que a história pode até ajudar no crescimento profissional", diz. Por si só, essa função utilitária já seria reputada herética por correntes da esquerda: o estudo da disciplina deveria servir à revolução, e não ao sucesso no emprego. Os best-sellers de história vão além: têm a importântíssima função de sanar deficiências da escola, corrigindo distorções às vezes caricaturalmente ideológicas de alguns livros didáticos.
O provocativo "Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil" vem fazendo sucesso justamente graças a sua verve iconoclasta. No ano que vem, o autor Leandro Narloch, em parceria com um jornalista da VEJA, Duda Teixeira, deve lançar pela editora Leys uma sequência internacional do livro - o "Guia Politicamente Incorreto da América Latina", dedicado à desmontagem factual de ídolos como Bolívar e Che Guevara, entre outros. "Há um mal -estar na história do Brasil feita na academia. O mundo que está ao redor não parece resultado dessa história que eles estão ensinando, e isso causa muita inquietação", diz Jorge Caldeira, autor de "Mauá", biografia do grande empresário do Segundo Império que, lançada em 1995, vendeu mais de 160.000 exemplares. Hoje à frente da editora Mameluco, Caldeira afastou-se um tanto das edições voltadas para o grande público para se dedicar a obras mais especializadas de história econômica, como "História do Brasil com Empreendedores".
Engana-se, porém, quem imagina que a destruição de mitos seja o interesse primeiro dos livros de história que têm chegado à condição de best-sellers. Pelo contrário, eles fornecem ao leitor um importante senso de continuidade. A história brasileira tem passado por sucessivos processos de desmontagem, da República ridicularizando as figuras do Império ao atual governo se lançando como marco zero de tudo que é bom no país. Mas o Brasil, como todos esses autores provam, não começou ontem. "Num momento em que o 'nunca antes' virou bordão e se tenta apagar o passado, não há resposta mais eficiente que a história, define Mary Del Priore.

Por Jerônimo Teixeira
Revista VEJA - 08/09/10

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